Encontrada numa das ruas amareladas e estreitas do centro da cidade, encontrava-se suja e já aberta. Num envelope já consumido pelo tempo, o bilhete, que parecera não ter sido entregue ao destinatário, desembaraçava-se assim:
" Vejo que não há solução, a necessidade de exprimir, mesmo que de modo canhoto e oblíquo, o que venho passando transborda por meus poros. A tamanha aflição com que percebo o desviar de seus olhares para lados já preenchidos por outros atinge-me de maneira cruel e impiedosa, fazendo-me pensar, em todo tempo que me sobra livre, numa medida, mesmo que desesperada, de fazer com que o que encontra-se dentro de mim liberte-se. Sinto concluir que não há meio em que nenhuma parte saia ilesa, sem sofrer danos. Desejo que compreendas a gélida brisa que espalha-se por minh'alma, espero que consigas perceber o imenso abismo que abriu-se em minha frente diante de suspeitas, mesmo que ainda não confirmadas. Sei que podes achar que estou alienado, fora de minha sanidade, porém também sabes que não é em vão que vos explico os motivos da decisão que tomo. Pensando melhor, seria até mais proveitoso não me exceder em palavras explicativas, deixando que minha atitude falasse por si mesma, ainda assim deixo alguns rastros pelos quais as linhas de meus pensamentos passaram, para que talvez consigas interpretar um bocado. Ao menos, não foi em vão refletir sobre seus recentes atos, fez-me decidir, num momento de frieza, que seria obrigatório fazer cair o pano, escancarando toda a verdade, crua e nua. Esse que te toma o tempo que antes era unicamente dedicado à mim, não merece que me gaste muitos impulsos nervosos. Pouco me importa quem seja, é relevante apenas o porquê. O mais é puramente inútil, não adianta revolver os baús da minha memória, pois não há modo com que encontre o primeiro momento de desconfiança, fundamental para chegar aos tão procurados porquês. Enquanto escrevo, acabei de pensar numa saída para os meus fins, não muito garantida, mas para quem anda à deriva no mar qualquer pequeno bote é chance de sobrevivência. Essa saída me foi presenteada por um pequeno objeto que se encontra aqui por perto, de um metal enferrujado, servindo de adorno à parede para qual descanso meus tristes olhos. Levanto-me e seguro, com uma determinação que não parece ser minha, o fatal e pequeno punhal. Irei cravar-lhe direto na fonte de minha dor, ao lado esquerdo do peito, e farei com que todo amor que fez de mim um abrigo um dia se espalhe para todos os lados e direções. Sentindo-me demasiadamente tranqüilo e aliviado pela decisão que acabo de tomar, penso nas irremediáveis conseqüências. Provavelmente, acharás demasiado dramático, porém a única solução que me apareceu e que não prejudicasse a ti, fora esta. Além de privar-me dos risinhos e cochichos que, sem dúvida serão disparados como flechas por todos, irei espalhar tudo o que sou capaz de sentir para quem quer que possa interessar-se. Tornando-me assim útil para quem ainda não é capaz de sentir o que um dia senti por ti."
Nada de nomes revelados, deixo-os nas sombras da ignorância para que não haja identificações. Apesar de fazer um tremendo esforço para reconhecer as letras que um dia fizeram parte de um endereço, as águas de uma chuva que um dia inundou as esperanças de um pobre apaixonado, não me deixam identifica-lo. A conclusão que chego? Permanece também oculta, para que não haja influências nos poucos que possivelmente estão passando seus sedentos olhos pelas linhas extraviadas.
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